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Conto: A deusa dos olhos brilhantes

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Andei por meses e percorri milhares de quilômetros antes de encontrar o que procurava. Pensei até em desistir de minha viagem, mas quando ia me virar para trás, finalmente vi um sinal: um homem correndo pelo céu, corria como se estivesse no chão e ia em direção à uma tempestade furiosa no horizonte ao leste. Eu estava no meio do Deserto do Thar.

A visão mágica do corredor me trouxe ânimo e comecei a correr, mas ele era rápido demais para se acompanhar. Quando me aproximei da tempestade, ela tinha a aparência de um largo tufão de areia, com raios partindo em todas as direções. Minhas pernas tremeram mas eu estava certo de que ali estava o lugar que eu tantos busquei, então me cobri e segui em frente.

Passei por um turbilhão, quase fui levado pelo vento e atingido pelos raios, e depois de alguns minutos andando, meus pulmões doíam e minha pele estava seca e ferida, mesmo coberto a areia conseguia penetrar pelos menores buracos. Não conseguiria dizer quanto tempo andei nesta situação, mas quando finalmente saí da tempestade, senti uma presença de outro mundo.

Quando olhei ao meu redor, vi o homem que passara por mim correndo pelos céus. Ele estava sentado ao lado de um velho muito semelhante a ele, tinham os mesmos olhos. Estavam sentados em dois de doze tronos em ruínas, e conversavam quando cheguei e, surpresos pela minha presença, se viraram. Me senti minúsculo, não só porque o homem e o velho tinham mais de três metros de altura, mas porque eu estava diante dos antigos deuses do mundo.

— Quem vem? – Perguntou o homem mais jovem. Ele era forte e esguio, muito bonito também e seus cabelos eram encaracolados e castanhos, mas já apresentavam sinais da idade, assim como seu rosto. Apesar disso, exalava saúde e beleza que me encantavam.

— Sou um viajante, procuro por vocês há muito tempo, e estou aqui para ver Zeus – Sonhei muitas noites com aquele encontro e meu coração rejubilava em meu peito.

— O que deseja me pedir, viajante? – O deus dos deuses perguntou – Estou velho e minha família se foi, meu poder pouco importa para o mundo e resta-me apenas o prazer de conversar com meu filho até que a morte me leve.

— Temi que ela o levasse antes que eu os encontrasse. Por que estão aqui, tão longe de sua casa?

— Estamos em casa – ele continuou – O Olimpo vai para onde eu quero que ele vá, e nos últimos séculos, eu só quero ficar longe – Sua voz estava baixa e lenta e me senti profundamente sozinho, não por empatia, mas por que os sentimentos dos deuses controlavam os meus.

— Você não está longe, muitas pessoas conhecem as histórias dos deuses e as guardam em sua mente ou em livros. O meu pedido, senhor, tem a ver com isso.

— Pois pode pedir e lhe darei.

— Me conte suas memórias. Temos mitos e histórias antigas, mas nada disso se compara ao relato dos deuses, por isso o meu pedido é que me conte todas as suas histórias.

Antes de falar qualquer coisa, o deus suspirou. Apesar de velho, seu corpo era perfeito, sua pele lisa e sem marcas, seus músculos simétricos e definidos, sua saúde parecia superar a de qualquer humano. Depois desse encontro, as estátuas gregas me pareceram esboços infantis.

— Vou lhe narrar as histórias que conheço e que vivi – Zeus começou – Hermes fará o mesmo e peço que escreva. Podemos morrer em corpo, mas viver nas páginas de um livro é melhor do que nada – Ele olhou para um dos tronos, onde repousava um escudo e uma lança e me contou:

“Perdi agora minha filha, a sábia e severa Atena, com seus olhos brilhantes e firmes e que inspirava a sabedoria e a coragem dos heróis. Ela quem me salvou da profecia que destronou meu pai e o pai de meu pai, mas sua história começa antes disso, quando eu era casado com Metis, a deusa mais sábia e astuta que conheci.

Estávamos desfrutando de ambrosia e néctar, numa tarde de banquete quando uma pitonisa se aproximou. Era uma enviada de Gaia, minha avó, e trazia um mal presságio. Naturalmente, quando a grande Gaia fala, os deuses escutam, e o banquete se silenciou para que a mulher pronunciasse as palavras terríveis sobre nosso futuro.

— Venho em nome de Gaia, mãe de Crono, pai de Zeus, para trazer-lhes um oráculo. Assim diz Gaia: O filho de Metis tomará o poder de Zeus e, se porventura, Metis parir uma mulher, o filho desta mulher tomará o poder de Zeus.

Oráculo nenhum deve ser desprezado e não se pode mudá-los, eles são regidos por forças maiores do que controlamos, mas aquela promessa me dava possibilidade de fugir. Se Metis não tivesse filhos homens ou filho algum, eu estaria seguro e, pensando nisso agi com naturalidade.

Dispensei a sacerdotisa e começamos a discutir sobre o que fazer. O que foi tido não previa apenas a minha queda, mas a queda de todos os deuses, assim como os celestiais caíram perante os titãs e eles perante nós. O agradável banquete se tornou um acalorado debate, meus irmãos estavam lá também e apesar de nenhum deles falar, eu sabia que eles queriam matar minha esposa.

Antes que uma briga começasse, dispensei a todos dizendo que precisava pensar antes de decidir, e assim o fiz. Planejei o que faria para evitar o oráculo e, ao anoitecer, chamei Metis para conversar. Ela podia se mimetizar em qualquer objeto, animal ou criatura e diversas vezes eu lhe pedia para me mostrar seu poder, tentando imitá-la, sempre sem sucesso.

— O que deseja, querido? – Perguntou.

— Quero observar suas metamorfoses, acho que hoje finalmente é o dia em que adquirirei esse poder.

— Um dia tão terrível e pensa apenas em meus truques?

— Não há nada no mundo que me fascine mais do que você, amor – Menti.

— Eu creio que não, meu senhor – Ela concordou, cortejá-la era coisa que eu poderia fazer para tentar enganá-la – Em que deseja que eu me transforme?

— A mais bela das aves, a águia – E assim ela fez, se tornou meu animal preferido, meu símbolo e a mais bela águia que um dia eu vi – Agora, uma criatura mística, torne-se como Pégaso – E assim ela fez, sem esforço, sem precisar pensar duas vezes, no filho de Medusa, mas eu tinha um propósito com aquela reunião, e não era algo bondoso, então fiz o pedido que mudaria a minha vida – Certo, agora se torne uma gota d’água.

Por um momento, ela inclinou sua cabeça de cavalo, confusa, mas obedeceu e saltou no ar, diminuindo de tamanho até se tornar uma pequena gota a qual eu, saltando de meu trono, abri a boca e a engoli. Ela nada fez, talvez tenha sido minha velocidade, ou seu amor por mim pode ter ofuscado sua astúcia, mas estava tudo acabado. Apesar de ter perdido minha esposa, estava salvo do oráculo, ou era o que pensava.

Ainda me alegrei ao ver que sua sabedoria e seu poder de transformação haviam sido absorvidos por mim, mas não notei que uma outra vida estava sendo gerada em meu corpo. Apenas meses depois entendi que Metis estava grávida quando a engoli e seu feto não morreu, mas como sua essência se misturou à minha, o bebê se ligou à minha mente, e lá cresceu até chegar a hora de sair. Eu não sabia que essa era a causa quando uma terrível dor de cabeça começou a me atormentar.

Chamei Hefesto para que quebrasse meu crânio e verificasse se havia algo dentro de mim que estava causando esse sofrimento, e foi o que ele fez, posicionando a estaca em minha testa e a martelando, rachou minha cabeça, de onde um brilho ofuscante saiu. Ouvimos aterrorizados um grito de guerra que ecoou por toda a Grécia e de dentro da minha cabeça, uma mulher com vestes de guerra, armadura de bronze e escudo e lança empunhados, saiu.

Seus olhos brilhavam como dardos e demonstravam força e poder. Ela nasceu com a sabedoria da mãe e sua chegada ao Olimpo foi causa de muitos problemas desde o primeiro dia. Eu já havia casado com Hera e o fato de eu te parido uma filha sem precisar dela a enfureceu e ela quis uma vingança contra mim, como se eu soubesse que estava grávido.”

Os grandes Zeus e Hermes riram da situação. Senti alegria com eles, estar na presença de deuses é se submeter involuntariamente ao seus desejos e sentimentos.

— Lembro até hoje da reação dela. Os banquetes foram suspensos por dias e até Afrodite foi acusada de ter acobertado uma de suas traições – Hermes comentou.

— Como se eu precisasse da ajuda de Afrodite para isso, não é? – Ambos riram novamente. A relação de Zeus e Hera parecia um assunto interessantíssimo, mas jamais ousaria interromper a narrativa – Bem, mas depois disso, minha querida esposa gerou um feto, usando apenas seu poder e sem recorrer a meus… métodos.

Ele continuou:

“Alguns meses se passaram e ela gostava de dizer que estava muito feliz com aquele filho, em toda oportunidade ela esfregava na minha cara que era tão capaz quanto eu de gerar uma criança sem precisar de um parceiro, mas é claro que isso é um engano, eu não sou capaz disso, o nascimento de Atena foi um acidente que eu nem imaginava ser possível.

Por fim, minha esposa deu à luz um glorioso e terrível filho. Ele era feio e peludo como nenhum deus já foi. Além disso, era coxo e sem pensar duas vezes, movida por raiva e frustração, lançou-o de cima do Olimpo para o mar. O que aconteceu ao pobre Hefesto é outra história, mas a minha crise, que pensei ter superado, voltara inesperadamente vestida em uma armadura de bronze e belíssimos olhos.

Minha sábia Atena, artesã, guerreira e dominadora da natureza, gostava de provocar meu irmão Poseidon em tudo que fazia. Se ele deu cavalos à humanidade, ela criou as bigas e os arreios, quando ele castigou a terra com ondas e a fúria do mar, ela criou navios e a maior de suas disputas foi quando seus adoradores o trocaram por ela, na cidade de Atenas. Poseidon era um pobre coitado, um perturbado por sua própria mente…”

O deus se apoiou no trono pensativo e pensei ver lágrimas em seus olhos. O pequeno vislumbre que tive foi de um líquido brilhantíssimo e dourado e claro, um sentimento profundo de saudade, mas logo Zeus piscou e o brilho se atenuou.

— Bem, a profecia dizia que o filho da filha de Metis tomaria meu lugar no trono. Eu não poderia deixar isso assim, mas não poderia matar minha filha, ela era brilhante, incrível e eu a amava muito, mas poderia consultá-la, sua sabedoria se equiparava à da mãe e à minha.

“— Atena, minha guerreira e sábia filha – Disse à ela – Tenho sido atormentado, desde seu nascimento, por uma preocupação angustiante.

— O que poderia tirar sua paz, pai, além de um oráculo?

— Você sempre me entende. O oráculo que me perturba é mais antigo do que você e dizia que o filho de minha filha será o homem que tomará o meu trono.

— Isso é terrível, mas Afrodite tem diversos filhos e nenhum deles almeja o seu lugar.

— O oráculo se referia apenas a ti, Atena. O seu filho será aquele que me tomará o poder – Ela abaixou a cabeça e pensou. Me disse que precisava de tempo e saiu em busca de sua irmã, Afrodite.

Sem uma resposta, passei a noite em claro, relembrando a luta que tive com meu pai, quando os ciclopes armaram a mim e a meus irmãos. Fomos impiedosos e cruéis, como ele foi conosco, matando-o sem dó. Seria esse o meu fim também? Seria o destino de todos que se sentavam no meu trono?

No dia seguinte, Atena entrou com passos firmes e confiantes, marchando em minha direção. Olhou para mim e sorriu.

— Trago boas noticias, pai.

— Me diga logo, estou morrendo de angústia!

— Afrodite me permitiu manter a virgindade em prol de sua segurança – Fiquei chocado com aquilo. Não esperava que ela fosse tão longe por mim e a questionei – Não se preocupe, nunca me interessei e estou certa de que nunca me interessarei por homem, mulher ou deus nenhum.

— Mas filha…

— Vivo pelos heróis e pelas minhas invenções. Não me interesso pelos assuntos de Eros.

E assim, ainda jovem, Atena salvou minha vida e a de meus irmãos e nunca seduziu ou se deixou seduzir por ninguém. Não que ela fizesse questão de se mostrar, não tirava a armadura e eu mesmo nunca vi seu corpo em outras vestes, mesmo em banquetes e festas, ela jamais revelou nem a silhueta de seu corpo.

Ouvi dizer que Hefesto teve um interesse pela irmã uma vez, mas Hermes saberia contar essa história melhor do que eu. Ele tem olhos muito atentos para fofocas, eu provavelmente estava distraído quando isso aconteceu.”

Este foi o relato de Zeus sobre o nascimento de sua filha. Claro que não fui embora depois disso e muitas e muitas histórias ele e seu filho me contaram, mas vou encerrar este capítulo aqui. Apenas uma dúvida me restou da história, já que Hefesto havia aberto a cabeça de Zeus para que Atena nascesse, como poderia ele ter nascido depois disso.

O grande pai dos deuses me disse que, mesmo o tempo passando como um rio, os eventos da esfera divina não estavam sempre à mercê de sua corrente. Ainda não entendi muito bem como o tempo se comporta no Olimpo, mas para todos os efeitos, ele não é tão relevante. Mesmo assim, ao fim de meus relatos, tentarei traçar uma linha do tempo dos eventos aqui narrados, apenas como exercício mental e para saciar a mente dos mais céticos e pouco imaginativos.

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