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As Crônicas Marcianas e o passado futurista

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Depois de Frank Herbert me arrebatar para o mundo de Duna, depois de Rodrigo Paulino me fazer correr contra o tempo com Elise, o terceiro livro de ficção científica do ano me leva a reflexões humanistas, usando o planeta fictício de Marte.

Introdução

Evidente que não sugeri que Marte não exista, apenas Marte de Ray Bradbury, um planeta rico em população, fauna e flora, com marcianos que navegam por mares de areia e voam em carros puxados por aves de fogo. Marcianos telepatas e metamorfos, capazes de destruir os humanos apenas com o pensamento, mas suscetíveis a doenças tão inofensivas para a nossa raça.

O livro é uma coletânea de contos que narra episódios da saga humana em sua colonização no planeta vermelho. Meu desejo é contar todos os contos aqui, falar de cada momento marcante, belo e imortal desses contos, cada parte que me tocou e me emocionou, mas vou me ater às minhas tradições e comentar sobre três aspectos do livro: As reflexões sobre a humanidade, a beleza da ficção científica fantástica e os assuntos imortais da literatura (meio presunçosos esses tópicos).

Humanos Alienígenas

Não é difícil pensar que em histórias que falam sobre colonização, haja críticas e questionamentos a respeito das colonizações realizadas no nosso próprio planeta, mas no início, esse tema não é o foco da narrativa. Pelo contrário, ele não critica ou questiona os humanos, mas nos mostra muito da sociedade marciana, como eles se relacionam e principalmente, como eles funcionam de maneira diferente de nós, e mesmo assim revelam semelhanças de comportamento.

Seja por um relacionamento ciumento entre um marido e sua esposa, seja por uma sociedade que não sabe lidar com indivíduos neurodivergentes e até os sistemas de defesa adotados por um povo que percebe lentamente que sua terra está sendo invadida, e eles precisam cuidar de sua história, tradição e sua própria vida.

Infelizmente, a humanidade é teimosa e na maior parte das vezes, implacável. Por maior que seja a resistência marciana, os humanos conseguem se fixar em Marte e começam a moldá-lo ao seu próprio costume e é neste momento que começam as críticas. Um arqueólogo se apaixona pelo estilo de vida marciano e se vira contra a tripulação, humanos agem como se o simples fato de terem pousado no planeta lhes dá direito sobre as terras, cidades antigas são suplantadas por tecnologia terrestre e toda a cultura marciana é esquecida e apagada.

Fica claro como isso é uma crítica direta aos exploradores que conquistaram o novo mundo, porém, não há uma imposição desse pensamento por parte do autor, ele apenas escancara o que sempre foi feito na terra, de humanos para humanos, e como o ardente desejo por progresso usa os fins para justificar os meios.

Outras questões humanas, mais profundas e inerentes à psique, também são tratadas, ainda usando os marcianos como ferramenta. Como as pessoas facilmente se apegam a uma ilusão de bem estar e felicidade, enterrando a consciência da mentira que vivem, como costumes não são questionados e a sociedade vive de maneira automática e segue um mesmo fluxo, sem pensar nos porquês mais básicos do cotidiano. Como o mal da solidão é relativo às possibilidades além dela e como a sociedade é a solução para os humanos e a fonte dos maiores problemas da raça.

Ficção científica sem ciência

Marte descrito por Ray Bradbury é um Marte completamente fantasioso e sem embasamento. Comparando com obras recentes como Interestelar, Perdido em Marte e tantos outros que buscam realismo em sua ficção, com longas explicações teóricas da astronomia e física, As Crônicas Marcianas são mais facilmente associadas à Star Wars ou Star Trek.

A proposta é totalmente diferente, mas o desapego por explicações científicas em detrimento de criar um mundo acolhedor e com o qual o leitor possa se identificar e amar foi uma característica que me tocou profundamente. Por um lado, eu estava cansado, depois dos últimos livros, de tantas explicações técnicas, e por outro lado, a fantasia abre um leque de possibilidades infinitas e pessoais, criando no leitor um mundo personalizado a sua própria imaginação.

Essa característica transforma a experiência do livro em algo muito mais pessoal do que obras puramente técnicas, e criando em nossa mente um planeta totalmente novo e único, apesar de seu nome ser o mesmo do Marte seco e inabitado que conhecemos hoje.

Assuntos imortais

Concluindo, é notável como obras clássicas são imortais por que usam seus mundos fantásticos não como foco, mas como pretexto para discutir assuntos da natureza humana. Como em Frankenstein, o autor cria um mundo crível e com regras próprias, mas que não tem um fim em si mesmo, pelo contrário, busca evidenciar características da mente e sociedade humana.

Muitas dessas características são imortais, independente da sociedade, época ou sistema vigente, vide as tragédias gregas, que desde muito tempo falam sobre os mesmos assuntos que sociólogos modernos dissertam. O desejo sexual, a ganância, o orgulho, a consciência de que há regras éticas que nos regem, o conceito de culpa e punição, e outros inúmeros temas que nunca foram deixados de lado pelas artes.

Esses temas são o que tornam As Crônicas Marcianas um livro icônico e clássico, e é o que difere as obras que levamos para toda a vida em nossa prateleira e aquelas simples e vazias, que nos entretém e depois são facilmente esquecidas e substituídas.

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